quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

01

Eu entrei no quarto e as palavras começaram a parar de sair. Ele me olhava fascinado, como se sempre esperasse pela minha fascinação. Tinham símbolos que eu reconhecia sem conhecer. O saber do não sabido alimentava meu desejo de saber. E ele parece que sabia disso. Quisera poder me explicar, não sabia. Eram subjetivos os nossos conhecimentos: os meus por não saber de onde vieram, os dele por de tanto saber não saber como mostrar. Demorariam anos. E, será que queria me demorar? Se minha ignorância já trazia o sentimento de reconhecer, queria eu entrar no conhecimento para talvez só reconhecer depois que nada sei? Sabia que ele tinha demorado. Não sabia se tinha a possibilidade de entender. Mas sentia que tinha, mas tinha pra mim que sentia. O quarto parecia não ter fim. Talvez por ser pela primeira vez, talvez não. Queria eu o imediatismo de olhar tudo e a demora de analisar cada coisa. Queria ficar entre aquelas quatro paredes como se precisasse resenhar uma obra de arte e não sei quanto tempo estou sem as palavras. Elas, aqui, parecem não importar. Mas sou só a convidada, talvez precise falar. "Eu... eu..." Ele me calou. Não com palavras, talvez de tanto querer o silêncio. Comecei a pensar que de tanto querer o silêncio eu também falei, eu também fiz barulho, eu quebrei o desejo em comum entre nós. Mas, não, não me importava. Quem me trouxe aqui que me perdoe: mas as neuras não me atrapalhariam aqui. Quase me importaria com o que ele pensa, se não sentisse que ele sabe o que eu penso e quase que pensa igual. Quase. E tudo. Tudo era quase lá. O quase, era tudo. Eu quase sabia tudo. Tudo quase me reconhecia. Eu queria poder anotar. Mas os detalhes não importam aqui. Eles são quase. E, o tudo só se ve de lá. Não eram as coisas e o meu desejo de fantasiá-las. Era a fantasia que elas próprias tinham. Pareciam ser antigas. Mas não elas. As ideologias delas. Que sabe-se-lá quais são. Pareciam fazer sentido. Sabe-se-lá pra quem. Pra mim. É errado ter o poder de saber e o medo de nunca saber? É sobre oportunidade, competência ou coragem? Já não sabia. Mas sentia também que ele esperava essa resposta. Sempre foi difícil ser subjetiva. Sempre só senti e nunca soube se isso valia mesmo. Talvez só achasse e me confortasse com, apesar de não saber, sentir. Talvez, pelo fato de sempre ter que saber de tudo, mesmo sem querer de fato saber. E, aí, eu sentia. Se é ilusão que tornei verdade ou não, talvez tenha então aprendido a sentir por não saber. E dava certo, ao que lembro, sempre deu. Mas, o que é o que lembro? Talvez tenha criado a memória também, por não saber e não saber se sentia ou se achava. Mas, talvez sim ou talvez não, tudo isso tenha sido feito pra agora. Porque, agora, eu tinha certeza: eu sinto. Me deu um branco. De tudo. Branqueou meus pensamentos e visão. Eu achei que fosse desmaiar. Mas me lembrara que da vez que desmaiei vi tudo preto. "O preto é igual ao branco". Me disse eu. Não que tenha pensado, me disse. Como se alguém eu tivesse dito pra mim. Era como se fossem duas em mim: uma em transe embranquecida, outra que via a transe e tentava decifrá-la. Como se uma sofresse um sacrifício e outra tentasse narrar, a que sofria só queria poder voltar. Mas, a narradora, gostava de decifrar. Irritava-me mais do que o branco. Parecia um estúdio de fotografia sem fim. Só tem eu. E branco. E ninguém pra colocar um fundo falso no computador. Talvez. Talvez se eu tentasse inventar um fundo... e aqui está! A agonia não sabia se crescia ou desaparecia de vez. Eu fala pra mim que "calma." Eu implorava pra mim que "para". "Você está bem?" Não era mais eu falando. Talvez assim pudesse voltar. A briga entre as duas faces de mim cresceu mas a voz do homem que não ouvia faz tempo ajudou uma de mim a voltar. "Estou", disse inspirando forte e engolindo saliva. Ele me olhou como se o sonho tivesse acabado e disse "Bem, gostou?" Não parecia mais estar aonde eu estava. Eu fui longe demais ou ele voltou de mais longe ainda? "Bem, gostei, mas..." "Então vamos dormir. Vou te mostrar seu quarto"

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Eu e meu alguém.

                O primeiro encontro é sempre o mais difícil. A gente fica nervoso, curioso, em terreno desconhecido. Conhece um A, conhece a primeira letra do seu nome e quando menos espera está escrevendo “mamãe”. A gente se apaixona pela língua sem nem saber direito o que é. Eis que aquelas letras e que poderiam ser facilmente confundidas com rabiscos involuntários e que ocupam quase uma folha inteira, lhe dão orgulho. A gente chama a avó, mostra para o tio e escreve a mesma palavra até cansar. Até aprender outra. É como se, aos poucos, conhecêssemos cada pequena parte de nossa nova paixão. O que era platônico, agora é palpável.              
               Aprendi a escrever com minha mãe. Todas as vezes, antes de ir ao trabalho, ela me deixava letras pontilhadas e eu só passava o lápis por cima. Quem diria que eu, que só sabia contornar, hoje faço de tudo para fugir de qualquer coisa que não seja escrever. Aos quatro anos tive o meu primeiro encontro à luz de velas. Não lembro como se fosse ontem, mas nem como se fizesse tanto tempo. Mês passado talvez. Lembro como se fosse há trinta dias que as letras grandes do supermercado chamaram minha atenção. Foi só o farol parar por um tempo para eu soltar: “Yaya Supermercados”. Que besta. Que nada, besta nada. Só não é pela reação da minha avó que, de besta, só se for de assustada. Sua feição me fez perceber: “Eu li”.
             E aí fui para a escola. E é engraçado como a gente se acostuma. Nos dizem que é obrigatório, que tem que ser sempre, que tem que ser sério, que tem ser nada menos nem mais do que certo. A gente aceita. E acredita. E reclama cada vez que nossa mão dói ao copiar o que a professora chata de geografia passa. Crianças: analfabetas do abecedário certo das palavras. Mal sabíamos que a língua nunca cansa só por não ser uma só. O que é infinito, além de não ter como se tornar monótono, jamais será totalmente conhecido.
              Alguém lhe apresenta a alguém. Você se familiariza com alguém. Você se acostuma com alguém. Você e alguém já são monótonos, normais, fáceis de lidar. Alguém lhe mostra que pode ser mais. Alguém se desmembra. Alguém lhe dá a capacidade de o tornar mais bonito, de tornar você mesmo mais bonito só de saber usar o alguém. Alguém lhe ajuda a demonstrar, alguém lhe ajuda a comprovar, alguém lhe ajuda a entender. Alguém é, agora, solto no papel para tentar descrever alguém que você tinha quase esquecido da importância. Alguém foi um dos primeiros “alguéns” apresentados a você, e alguém ainda não deixou de ser absolutamente surpreendente.

Pedro Simões

           Dona Maria, empregada do menino de ouro, foi busca-lo na escola. Pedro não lavava as mãos e ria-se quando ouvia: “olha os germes, menino!”. Pedrão era o atacante da turma. Pedrinho era o filho preferido, o neto escolhido, o sobrinho mais querido. Aos sábados, a arquibancada do pequeno campo de futebol quase não sustentava tantos Simões. Pedro Simões era nota 10, às vezes 9 e “olhe lá”, contava o pai, Seu Orgulhoso, no Natal. No último não deu tempo: “Vai buscar a Coca-Cola enquanto converso com seu pai, Pedro”. Reclamou. Menino mimado tem como mimo achar que sempre faz tudo. 
          Voltou ainda resmungando, mas viu que tinha motivos maiores para se preocupar: o olhar de seus pais voltado a ele. Em seu diário, depois, podemos encontrar a busca por palavras para descrever aquele olhar: confuso, assustado e um garrancho riscado que sabe-se lá. Pedro nem imaginava, mas, no fundo, tinha certeza. Encontrou um pouco do que buscava ao ouvir mais tarde a voz irritante de sua tia: “Parece que a mãe dele foi algum tipo de taróloga.” A mãe de Pedro era cética, pelo o que sabia.
          Dia 26 de Dezembro e “mãe, vou viajar no ano novo”. “Precisamos conversar antes”. Era sobre a ligação da mãe do Carlos e a resposta que Dona Cética foi buscar no tarot. Essa foi buscar Seu Orgulhoso e Pedro sentou-se suando frio. Buscou o incentivo de seus amigos por mensagem, mas estes só queriam saber da viagem. Buscou um modo de mentir, mas viu que não tinha como. Buscou um modo de se desapaixonar mas... “não, tudo menos isso”. Seus pais sentaram. “E aí?”. Buscou um modo de mostrar que já tinha buscado de tudo para buscar-se e eis que buscou as palavras certas para dizer: “sou gay.” 
          Ouvi dizer que Seu Orgulhoso está buscando novos apelidos e que Dona Cética ligou para mãe de Carlos: “nossos filhos namoram”. A verdade de Pedro era tão bem guardada que, empoeirada, buscava formas de sair. Escolheu fingir que era obrigada, talvez fosse mais fácil. Pedro não era nem mais Pedrão atacante nem mais o querido Pedrinho. Estava perdido, depois de se encontrar. “Mamãe só queria saber das pedras que atiramos na casa ao lado”, foi a última mensagem que mandou no dia 26. O resto do dia ele tirou para buscar a coragem que no fundo já tinha encontrado. 

sábado, 21 de setembro de 2013

Largar o carro.

                No meio do trânsito incessante, buzinas me gritam para que eu fique. No acostamento, posso ver um ou dois gatos pingado que me mostram o caminho contrário. Pareço confiar mais no sinal discreto dos pedestres do que no barulho de quem grita o que nem sabe o que está gritando. O sábio fala menos. Ouvi falar.
              Vivências ou vidências que me fazem querer sair, parecem ser menores do que a dificuldade que encontro ao olhar para o espelho retrovisor. Estou encurralada em um mar de carros que nem sabem para onde estão indo. Apesar de não saber também, minha vista pela primeira vez se deparara com uma nuvem preta, bem no final.
            Como vim parar aqui? Pegar na direção sem certezas me deixou presa. Olho para os lados e os pedestres já não estão mais lá. É o meu carro, o meu problema. Eles me alertam mas continuam pelo caminho que consideram certo.
              Decidi. Vou descer. Andar a pé. O que vou perder já não se compara com tudo que vou ganhar. Mas, espera. Tenho tempo. Deixa eu ouvir mais um som, andar mais um quilômetro. Tenho tempo, tenho tempo.
Nem tanto.

domingo, 19 de maio de 2013

Acorda.

                   A arte desperta. E qual a melhor maneira de faze-la senão criar um sono profundo? A gente tira o tênis apertado e a calça que machuca. Deitamos na arte como quem anda por horas em ruas que parecem as mesmas. O barulho do caos já não existe, os passos com pressa estão passando pela porta fechada e os olhares aflitos não conseguem contagiar os nossos, que saem da arte brilhando. A arte não saiu de nossas pupilas. Pudera.
Dorme em paz. Mas não muito. Programa o despertador. Não esquece do ciclo. Acorda, fecha a calça que machuca e veste a cara. 

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Pulei.

                 Achei um trampolim mais alto. Não tenho mais ninguém para gritar "vai" mas, ao contrário, a maioria lá em baixo também tem medo de que eu pule. Tenho, no máximo, uns poucos incentivos que nem sequer consigo ouvir.
                Tenho medo. Tanto. Mais do que já tive. Estou sozinha. Coloco a ponta do pé para fora e posso desistir só de sentir o vento em centímetros do meu corpo. Faço cara de espantada igual a todos os que me olham mas, como um empurrão que vem de dentro, me jogo como quem não se prepara antes do pulo - parecido com aquela corrida irresponsável de criança, junto com a testa franzida do salva vidas e o comentário de quem escuta o barulho. A barrigada dolorosamente impecável de boa. Pulei. Mergulhei. Doeu. Passou. Respirei. 

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Tiute.

             As coisas andam como se eu, que pensava as acompanhar, estivesse sendo enganada. Elas correm, voam e pousam como quem finge estar por perto mas aparece lá na frente. Elas acenam, olham e gritam: "foi você quem me empurrou". Empurrei, presenciei, criei. Criamos. Criamos o que negávamos, do que fugíamos. Criamos o que veio do nada.  
               Eu perdi o medo, o pudor, a roupa. Ganhei voz, coragem, calma. Pensei em parar. Parei de pensar. Me perguntei que motivos me levavam a querer fazer, da minha cabeça, um dispositivo de procura. Eu digitava as palavras erradas para resgatar qualquer informação solta, como um desesperado que tem prova de logarítimo e joga na internet o que é multiplicação. Soltava o futuro para entender o presente. O passado para adivinhar o futuro. 
               E deu tiute. Parou. Desligou. Antes de tentar concertar, vi que não é por acaso que parou de funcionar. Percebi que o meu rosto preocupado não refletia meu coração que sorria como quase nunca. E qual, se não o coração, o melhor vírus para parar uma máquina cheia de querer trabalhar? Não tem o que juntar, o que esperar, o que temer. Ter amado, ter dito, ter sentido. Já valeu a pena, mesmo se nunca correspondido.
           A gente sabe das coisas. A gente sente as coisas. A gente meio que esconde que sabe o que tem certeza, porque a certeza se confunde com desejo. A gente sabe o que você quer, a gente sabe o que eu quero. Mas a gente pergunta, a gente não responde. A gente tem medo, mas a gente da um passo cada vez que um pouco de coragem aparece. Eu disse. Você disse. A gente disse. A gente não acredita um no outro, a gente só acredita na gente. Ou será que eu é que acredito na gente, sozinha?


terça-feira, 5 de março de 2013

Desa(pega).

                 É estranho como a gente se apega a alguém. E desapega. E apega. E pega o jeito, pega na mão a outra mão, o outro coração. A gente se complementa. E se divide junto. Divide o passado, os sonhos, os gostos. A gente se  joga e espera que se joguem em cima da gente com todo o peso que tem pra trazer. E aí a gente dá, recebe, soma, aprende. E vai embora. E deixa ir. E desapega.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Fiquei.

             Quando criança, costumava subir no trampolim mais alto e olhar para baixo. Poderia ficar lá por horas, como se me confortasse a certeza de ter o poder de pular e a escolha de continuar com medo. Era bom, confortável. Até o dia em que não me deixaram sair enquanto não pulasse. E esse é um daqueles dias de criança que a gente só lembra do que sentiu. Ouvi meu tio, lá de baixo, pela última vez: "vai logo" com uma multidão de gente em volta dele. Pude sentir orgulho, mas principalmente vontade de pular de novo.
            Pouco tempo atrás, costumava ouvir suas palavras de perfeitas sintonia com o que eu precisava ouvir. Poderia ficar lá por horas, como se me confortasse ter a simples certeza de que eu tinha o poder de pular. Mas que tinha a escolha de continuar com o meu medo.
Pude sentir orgulho. E por isso, desci pelas escadas.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

mania de você

                  Costumávamos ter manias, defeitos. Os meus com os seus formavam os nossos. Só nossos, de doentio que era seja o que for que sentíamos. Você tinha a mania de me amar, eu de fingir que não. Seu defeito era dizer demais, o meu de ser viciada em cada palavra. Se lembra da sua mania de dizer que ia embora e depois voltar? Meu reflexo destrutivo de fingir não me importar com a única coisa que conseguia me prender a atenção: sua ida.
                  O equilíbrio dos opostos que essas palavras podem passar é errôneo. A balança - símbolo que dizem te definir - quebrou. E o desequilíbrio de nossa confusão equilibrava nossa loucura um pelo outro. Quem mais conseguiria entender minhas palavras senão os ouvidos que estão acostumados a tentar ouvir o que eu nem dizia? Eu tenho mania de escrever pra ninguém entender. Parecida com a sua de rimar pra ninguém ouvir. Uma minha, outra sua. Nossa.  
                  

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

dez caracteres.

         Eu ando escrevendo e apagando. Cem caracteres, menos noventa. Pode-se dizer que, as vezes, as palavras parecem não estar lá. Mas é diferente do vazio, do preto, do nada. É como marcar um encontro com um só um olhar no meio de uma legião deles. Não sei para onde olhar ou aonde procurar, mas posso jurar que ele também me procura. Me alivia a comparação entre olhares e palavras, qual a melhor motivação de um senão o outro? E em segundos, sem perceber, acabo de encontrar a palavra perdida na minha própria multidão de sílabas descordenadas. Sentir é tão necessário para escrever quanto escrever é a única coisa capaz de me fazer entender o que eu sinto.
Entendi Senti: Sentir.Senti, escrevi.

"Procure a forma exata de mostrar tudo o que sente em meros rabiscos. Você vai descobrir que eles confortam, mas não são suficientes. Talvez seja preciso alguém para rabiscar com você."