quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Eu e meu alguém.

                O primeiro encontro é sempre o mais difícil. A gente fica nervoso, curioso, em terreno desconhecido. Conhece um A, conhece a primeira letra do seu nome e quando menos espera está escrevendo “mamãe”. A gente se apaixona pela língua sem nem saber direito o que é. Eis que aquelas letras e que poderiam ser facilmente confundidas com rabiscos involuntários e que ocupam quase uma folha inteira, lhe dão orgulho. A gente chama a avó, mostra para o tio e escreve a mesma palavra até cansar. Até aprender outra. É como se, aos poucos, conhecêssemos cada pequena parte de nossa nova paixão. O que era platônico, agora é palpável.              
               Aprendi a escrever com minha mãe. Todas as vezes, antes de ir ao trabalho, ela me deixava letras pontilhadas e eu só passava o lápis por cima. Quem diria que eu, que só sabia contornar, hoje faço de tudo para fugir de qualquer coisa que não seja escrever. Aos quatro anos tive o meu primeiro encontro à luz de velas. Não lembro como se fosse ontem, mas nem como se fizesse tanto tempo. Mês passado talvez. Lembro como se fosse há trinta dias que as letras grandes do supermercado chamaram minha atenção. Foi só o farol parar por um tempo para eu soltar: “Yaya Supermercados”. Que besta. Que nada, besta nada. Só não é pela reação da minha avó que, de besta, só se for de assustada. Sua feição me fez perceber: “Eu li”.
             E aí fui para a escola. E é engraçado como a gente se acostuma. Nos dizem que é obrigatório, que tem que ser sempre, que tem que ser sério, que tem ser nada menos nem mais do que certo. A gente aceita. E acredita. E reclama cada vez que nossa mão dói ao copiar o que a professora chata de geografia passa. Crianças: analfabetas do abecedário certo das palavras. Mal sabíamos que a língua nunca cansa só por não ser uma só. O que é infinito, além de não ter como se tornar monótono, jamais será totalmente conhecido.
              Alguém lhe apresenta a alguém. Você se familiariza com alguém. Você se acostuma com alguém. Você e alguém já são monótonos, normais, fáceis de lidar. Alguém lhe mostra que pode ser mais. Alguém se desmembra. Alguém lhe dá a capacidade de o tornar mais bonito, de tornar você mesmo mais bonito só de saber usar o alguém. Alguém lhe ajuda a demonstrar, alguém lhe ajuda a comprovar, alguém lhe ajuda a entender. Alguém é, agora, solto no papel para tentar descrever alguém que você tinha quase esquecido da importância. Alguém foi um dos primeiros “alguéns” apresentados a você, e alguém ainda não deixou de ser absolutamente surpreendente.

Pedro Simões

           Dona Maria, empregada do menino de ouro, foi busca-lo na escola. Pedro não lavava as mãos e ria-se quando ouvia: “olha os germes, menino!”. Pedrão era o atacante da turma. Pedrinho era o filho preferido, o neto escolhido, o sobrinho mais querido. Aos sábados, a arquibancada do pequeno campo de futebol quase não sustentava tantos Simões. Pedro Simões era nota 10, às vezes 9 e “olhe lá”, contava o pai, Seu Orgulhoso, no Natal. No último não deu tempo: “Vai buscar a Coca-Cola enquanto converso com seu pai, Pedro”. Reclamou. Menino mimado tem como mimo achar que sempre faz tudo. 
          Voltou ainda resmungando, mas viu que tinha motivos maiores para se preocupar: o olhar de seus pais voltado a ele. Em seu diário, depois, podemos encontrar a busca por palavras para descrever aquele olhar: confuso, assustado e um garrancho riscado que sabe-se lá. Pedro nem imaginava, mas, no fundo, tinha certeza. Encontrou um pouco do que buscava ao ouvir mais tarde a voz irritante de sua tia: “Parece que a mãe dele foi algum tipo de taróloga.” A mãe de Pedro era cética, pelo o que sabia.
          Dia 26 de Dezembro e “mãe, vou viajar no ano novo”. “Precisamos conversar antes”. Era sobre a ligação da mãe do Carlos e a resposta que Dona Cética foi buscar no tarot. Essa foi buscar Seu Orgulhoso e Pedro sentou-se suando frio. Buscou o incentivo de seus amigos por mensagem, mas estes só queriam saber da viagem. Buscou um modo de mentir, mas viu que não tinha como. Buscou um modo de se desapaixonar mas... “não, tudo menos isso”. Seus pais sentaram. “E aí?”. Buscou um modo de mostrar que já tinha buscado de tudo para buscar-se e eis que buscou as palavras certas para dizer: “sou gay.” 
          Ouvi dizer que Seu Orgulhoso está buscando novos apelidos e que Dona Cética ligou para mãe de Carlos: “nossos filhos namoram”. A verdade de Pedro era tão bem guardada que, empoeirada, buscava formas de sair. Escolheu fingir que era obrigada, talvez fosse mais fácil. Pedro não era nem mais Pedrão atacante nem mais o querido Pedrinho. Estava perdido, depois de se encontrar. “Mamãe só queria saber das pedras que atiramos na casa ao lado”, foi a última mensagem que mandou no dia 26. O resto do dia ele tirou para buscar a coragem que no fundo já tinha encontrado.